LOVE SONG

MENSAGENS DE AMOR

2 de jul. de 2009

Eu sei, mas não devia....


Marina Colassanti
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos
de fundos e a não ter outra vista que não as
janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo
se acostuma a não olhar para fora. E, porque
não olha para fora, logo se acostuma a não
abrir de todo as cortinas. E, porque não abre
as cortinas, logo se acostuma a acender as
luzes mais cedo. E, a medida que se acostuma,
esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora. A tomar
café correndo porque está atrasado. A ler o
jornal no ônibus porque não pode perder o tempo
de viagem. A comer sanduíche porque não dá
para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar
cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente
se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja
números para os mortos!

E, aceitando os números, aceita não acreditar nas
negociações de paz. A gente se acostuma a esperar
o dia inteiro e ouvir no telefone : "hoje não posso ir".
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de
volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser
visto! A gente se acostuma a pagar por tudo o que
deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar
o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que
precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais
do que as coisas valem.

E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar
mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter
com que pagar nas filas em que se cobra e que se
compra. A gente se acostuma a andar na rua e ver
cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar
a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e
engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,
desnorteado, lançado na infindável catarata dos
produtos. A gente se acostuma à poluição. À luz
artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos
levam na luz natural. Às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar. À lenda morte dos
rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não
ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos
cães, a não colher fruta do pé, a não ter sequer uma
planta (desculpem, agora nós gostamos das plantas...
as temos dentro de casa! Até conversamos com elas.
Desculpem...).

A gente se acostuma a coisas para não sofrer. Em
doses pequenas tentando não perceber, vai afastando
uma dor aqui...um ressentimento ali... uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e
torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada,
a gente molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho
está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente
vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre
sono atrasado. A gente se acostuma a não ralar na aspereza,
a preservar a pele. Se acostuma a evitar feridas,
sangramentos; a esquivar-se da faca e baioneta...para
poupar o peito. A gente se acostuma a poupar a vida,
que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar,
se perde em si mesma...

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