LOVE SONG

MENSAGENS DE AMOR

29 de jul. de 2008

Eu sei que a gente se acostuma.


De Marina Colasanti

Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento
de fundos e a não ter outra vista que não
as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma
a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma
a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se
acostuma a acender mais cedo a luz.
E porque à medida que se acostuma, esquece
ao sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã,
sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode
perder o tempo da viagem.
A comer sanduíches porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado
sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir a janela
e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos
e que haja números para os mortos.
E aceitando os números, aceita não
acreditar nas negociações de paz.
E aceitando as negociações de paz, aceitar
ler todo dia de guerra, dos números
da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro
e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber
um sorriso de volta. A ser ignorado quando
precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo
o que deseja e o que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar
mais dinheiro, para ter com o que pagar
nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver
cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir a comerciais.
A ir ao cinema, a engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às besteiras das músicas, às bactérias
da água potável.
À contaminação da água do mar.
À luta.
À lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir passarinhos,
a não colher frutas do pé, a não
ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais,
para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai afastando uma dor aqui, um ressentimento
ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na
primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, a gente só
molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola
pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que
fazer, a gente vai dormir cedo e ainda
satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na
aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas,
sangramentos, para esquivar-se da faca
e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto
acostumar, se perde de si mesma.

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